Súbita Resposta - Vitor Silva

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2. Súbita Resposta


Sobre o «quadro», a mesa de trabalho e as suas diferentes «aplicações».
Resposta a algumas questões suscitadas acerca do ensino do desenho e do projecto.


¬ Sim, percebo tudo o que dizes. Mas, há sempre um mas. As coisas não vão apenas por si, por si mesmas, explicadas pela predomínio da heurística, da intuição, do desenho, da «auto-reflexividade» (tomada de consciência), etc.. Porque as coisas tem que se ditas e explicadas. Sobretudo no âmbito do ensino e da pedagogia. As questões de método implicam necessariamente as questões sobre os caminhos de acesso a qualquer coisa. Vícios e virtudes. Implicam escolhas e decisões. Não é apenas o livre arbítrio da emoção mas o juízo, a discriminação que se produz. Porque há o bom e o mau, etc. uma moralidade «oculta», feita de cultura estética ou mesmo de estetismo que importa desconstruir e explicar. Convém compreender o que fazemos.

No meu ponto de vista, importa dividir e abrir o conflito. Ensinar o desenho e o projecto implica apontar para a ferida (será a sutura?) que o registo gráfico ou a «ideia» inaugura. É através da escolha e da determinação da mesma que se vêem implicados os processos de trabalho e a atenção sobre os mesmos. Por isso, devemos começar por aquilo que divide o estudante do «mestre»: a dita experiência e a perda da mesma, ou seja, a cultura. Arquitectura ou Arte, Espaço ou imagem, Desenho ou Projecto. Eis alguns exemplos das matérias, dos conteúdos que perfazem a «divisão» e o lugar de transmissão do ensino. Condição (auto-) crítica de quem ensina.

Por exemplo: o desenho, como funciona?! O encontro com a questão consiste em dividir o desenho. O desenho opera e não opera. Opera para ver, aprender a ver, imbuir-se do real, perder-se no real, etc. Opera para transformar o que se vê, transformando-se ele mesmo, imbuindo-se de imaginário, de imagens, para se perder no real...
Como opera um desenho? ao representar a forma ou o espaço?! Uns breve traços procuram a sua «ordem» na desordem do quadro ( perante o cliché da folha em branco) que os acolhe. Há quadro e enquadramento. Lógica de enquadramentos. Exigência de enquadramento. Para haver desenho tem que existir quadro, limites, limiares, fronteiras. Imposições didácticas e pedagógicas. Se há problemas há projecto. E divisão. Conflito.
Na prática, o desenho é o que quisermos (retórica) é conhecimento (epistéme) e é desejo (impulso emotivo) mas é sobretudo processo que inaugura o quadro. Inaugurar o quadro, as relações, as formas e os espaços. No quadro ( na superfície do desenho) aparecem e desaparecem as divisões! No plano do desenho, esta imanência é de alta dinâmica. Tudo se move e tudo se transforma. Cabe ao desenho atribuir a «ordem», a composição das relações, das forças, etc.

De um modo pragmático quando falamos de desenho falamos de uma projecção mais ou menos consciente e inconsciente de imagens que nos mobilizam. Para o aluno, para o desenhador, desenhar só pode avançar (ou não) com a crítica das imagens que se produzem, ou seja, com as confrontações, as comparações, as tentativas e os erros. Trata-se sempre de dividir o que se produz. O autor-desenhador tem que reconhecer que o desenho divide, separa, exprime, monta conflitos. O professor orienta as divisões.
O quadro e o enquadramento da imagem do desenho é esse lugar onde é possível dividir ( e separar) o espaço; onde é possível compreender o que se furta a ser apreendido ou analisado na sua totalidade: i.e. o espaço. As estratégias de desenho exigem por isso reconhecimento da sua «origem» operativa e conceptual, exigem reconhecer donde vêm e para onde vão, exigem entender como funcionam. Em bom rigor, exigem o entendimento da sua pluri e multi-valência operativa.

Os sistemas de representação são diferenças operativas, modos de ver e de imaginar diferentemente o espaço. Como? Re-enquadrando-o, delimitando-o, impondo-lhe o quadro, impondo-lhe a «regulação» hipotética de uma imagem. Força operativa. Limites e quadro. (e.g. o corte!) Porque não há espaço nem imagem sem quadro, sem os limites que constituem o seu contexto, a resposta imediata ao seu problema. Se há dificuldades na representação ou na imaginação do espaço é porque não há determinação, mesmo que hipotética, dos limites onde se desenvolvem e coordenam os seus próprios cortes (ou serão problemas?!).

Em desenho (no ensino do desenho) este é um conteúdo crucial, a questão que põe em jogo todas as outras. A folha de papel, sim. O ‘quadro’ da folha. Problema de operar sobre a superfície, sobre a sua ocupação integral, sobre a composição, a escala, etc. Sim. Depois, ver, transpor, registar, representar, imaginar e «traduzir» o que vê em coisa semelhante, em similitude; lugar para verificar a medida, a proporção, a «regra». Sim, desenhar a forma dentro do quadro; porque o objecto só existe através das coordenadas do quadro. Modo de transpor, de «imitar», de registar.

Primeiros gestos...sucessivas consequências. Onde há formas há forças, tensões que o quadro «gere» e ordena. Cortes. Lógica de enquadramentos. Ver o objecto e calcular o desenho no campo da sua representação. Gerir as coordenadas do quadro como transposições do próprio corpo, como acções do corpo no espaço. Aqui a antropometria e a antropomorfia assinalam uma efectiva relação empática com o representado, uma viva suscitação do espaço. Tal como a forma no espaço existe a «compostura» e as intenções do corpo que vê ou imagina o espaço.

Ora, ver ou imaginar o objecto não é ver o espaço. E o espaço não é apenas o fundo do objecto, o vazio do enquadramento. O espaço é sempre o fundo que convive com o quadro, com a lógica relacional do enquadramento, com o «fecho» daquilo que se furta a ser fechado. Situação paradoxal. O espaço não é o vazio mas o contido sob a implicação do quadro. Porque o quadro não fecha apenas, o quadro abre. E abre-se às condições do seu «corte», às excepções da sua configuração imediata, ao descontínuo, movido pelas intenções ou acções dos seus limites. Fecha e abre o espaço. Articula-se e compõe-se; daí as diferentes relações com o corpo, a proporção, a escala.
Eis a Alegoria da janela albertiniana! Ver através: perspectiva. Quando o ver através se conjuga, como no cinema, com o plano e o fora do plano, com o movimento das imagens. As imagens do desenho potenciam esta lógica de montagem, de presciência entre o que está dentro e fora da janela, dentro e fora do desenho. Potencía o movimento, o rasgamento do quadro, a articulação necessária.

Para um estudante de arquitectura a dificuldade está em perceber o «quadro», em integrar-se nele, em compreender a dialéctica e os conflitos que são ínsitos à mais simples operação imagética. Porque ele não detém critérios nem perspectiva sobre o «quadro» nem faz ideia do que significa construir um «quadro». Cabe aos docentes introduzir a ideia de campo e de quadro de representação. Cabe ensinar aos estudantes que em cada desenho traça os seus próprios limites e problemas. Daí desenhar, voltar a desenhar. Continuar.
Não se trata, portanto, aqui, de introduzir uma figura de estilo mas sim de incentivar uma condição do pensamento gráfico, de pensar o que realmente constitui o desejo e o destino da imagem. Como pensar criticamente o sentido e significado do desenho? Pensar em primeira instância os limites instrumentais e metodológicos, os limites que constituem o quadro da produção, do registo e do consumo das imagens. Operação complexa, é certo mas enumerável. Isto é, divisível. E para todos!

Trata-se, por isso, de entrever o que as imagens do desenho contemplam, quanto aos objectivos e aos propósitos que nelas se compõem. Se a matéria é o espaço, a imaginação do espaço, a figuração gráfica só poderá ser paradoxal – simultânea e contraditória. Por um lado, medida, comensurabilidade, forma; por outro sensação, relação expressiva, fragmento, acaso. Por um lado, conhecimento, por outro, imaginação. Se o conhecimento extrai uma ordem possível das formas, a imaginação relança a hipotética formulação do que não tem forma. Daí que se trate de dividir e recompor processos inconscientes de produção e métodos conscientes de reflexão. Porque importa, através do desenho, trazer à luz as razões que a razão desconhece. E imaginar.

Por fim, trata-se - é inevitável! - de transpor o quadro para a mesa de operações. Após compreender as múltiplas divisões do quadro trata-se de rebatê-lo e de estendê-lo na horizontal. Rebater a ideia de quadro para a realidade da mesa de trabalho, para o plano das hipóteses e das formulações. Compreender que é sobre a mesa ou o estirador que se movem as operações de corte, de articulação, de composição e de montagem das imagens; no essencial, as relações de espaço – janelas, formas reduzidas, ‘miniaturas’, simulações, simulacros -,  aquelas que integram a efectividade da antecipação formal. Porque são as imagens que motivam e estão na origem da criação artística ou arquitectural. As imagens (do desenho ou outras) são um detonador emotivo, um despertador de emoções, algo que mobiliza os conflitos, algo que se constitui como nosso derradeiro, extensivo e intensivo, suporte de trabalho.

Vítor Silva

13 de Julho de 2011
Um agradecimento muito especial ao Rui Cardoso, pelo incentivo.
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